A Duas Mãos







Capítulo XI

Heitor

Às oito da manhã, já estava na estação. Os azulejos azuis que a cobrem de motivos naturalistas são um elo de ligação entre épocas distintas, função tornada mais evidente depois das tremendas obras que esventraram o subsolo e criaram uma vasta cratera de galerias onde se ouvem passos apressados por entre pastosos e sonolentos avisos sonoros de difícil inteligibilidade. Vai dar entrada na linha número um o comboio rápido Alfa Pendular proveniente de Lisboa - Santa Apolónia com destino a Porto-Campanhã. Faz paragem em Espinho e Vila Nova de Gaia. Sai dentro de momeeeeentos…
A maioria dos passageiros sabe a cantilena de cor. Alguns chegam a entoar os dizeres, caricaturando a melodia insípida do velho funcionário que os placards de aeroporto não destronaram ainda. É um pregão, uma voz do passado que valsa perfeitamente com a azulejaria da fachada.
No largo em frente à estação, reencontrei o velho “tolinho dos comboios”. Recuo vinte anos e foco a sua silhueta percorrendo as plataformas com passo decidido, dando ordens a toda a gente, apitando com vigor, aqui e ali, interpelando com ira os passageiros, exigindo os bilhetes ou o dinheiro. Por vezes, executava uma imaginária ligação telefónica num qualquer poste e encetava logo ali uma intrincada teia de resoluções de problemas de tráfego, acidentes, avarias, etc. Mas o que mais impressionava quem assistia era a facilidade com que desfiava todo o rosário de estações e apeadeiros, bem como seus horários, tudo na ponta da língua, sem hesitações nem gaguejos. Um mundo perfeito, um mundo alienado, uma constelação de topónimos e números, girando, girando, girando sem nunca sair dos carris.
Desta vez, encontrava-se no exterior. A constelação tinha-se estilhaçado. A outrora imutável configuração ferroviária de décadas tinha-se desmoronado. Procurara refúgio nas ruas da cidade, com o eterno apito na boca e o bloco de notas com o lápis dependurado. Nadava agora por entre as filas de trânsito, o mesmo sorriso trocista, a mesma máscara de zombaria. Ouvi-o indagar um transeunte divertido:
- Sabes quantos anos tenho?
- Não. Quantos?
- Sessenta e cinco. E o meu pai, sabes quantos anos tem?
- Quantos?
- Tem quinze.
- Quinze? Como é que pode ser?
- É a vida!
E seguiu viagem, orgulhoso dos seus segredos existenciais.
Com a máquina digital, tirei-lhe uma foto, em troca de um euro. Tirei-lhe várias, até conseguir uma de olhos fechados. Em todas as imagens de olhos abertos, um rosto interrogando-me Achas-me louco? Louco!
Mas, de olhos fechados, a verdade em gemidos! Sim, somos loucos…Queres ir andar no comboio-fantasma comigo?
Oito e vinte e quatro. Entrei na carruagem, rumo ao Porto. Um dia de folga na grande cidade. Eu e a minha máquina fotográfica digital. O dia prometia uma luz propícia. Escorriam gargalhadas tristes dos candeeiros.
Nunca tiro fotografias aos passageiros que dormitam nas carruagens. Quando estão mergulhadas no sono, as pessoas parecem abrir os olhos para a realidade e continuam imersas na cegueira.
Na grande cidade, conseguiria muitas imagens novas, pensava, ansioso. Todavia, nesse dia, não chegaria a captar nenhum rosto capaz de me ver.
| posted by Mito, quarta-feira, setembro 13, 2006 | 2 comments |