A Duas Mãos



Capítulo IX

Heitor

Valsa dos Clowns é o título da música preferida de Modesto, o peixe. Pego no CD e, mais uma vez, interpreto o ritual. Bato teatralmente com os nós dos dedos no vidro do aquário. Os barbilhos de Modesto agitam-se imperceptivelmente por detrás dum pequeno esconderijo basáltico. Levanto a tampa do aquário e lanço na água alguns farrapos de comida para peixe. Nada, nem um movimento. O jogo. Coloco o CD no leitor e selecciono a faixa. A voz de Jane Duboc cintila nas palavras de Chico Buarque: Em toda canção / O palhaço é um charlatão e vai deslizando languidamente pelo forro de madeira do tecto, à procura duma saída para as nuvens. No momento em que se cantam os versos Dizem que seu coração pintado / Toda tarde de domingo chora, o aristocrático peixe abandona o refúgio e encaminha-se para o vidro, atirando-me um seco “Olá”. Depois, vira-me costas e nada em busca de comida, engolindo-a em sorvos precisos e violentos.
- Novidades? – perguntou-me com fingido desinteresse.
- Algumas – respondi, displicentemente – comprei o equipamento.
- A sério? Conseguiste fazer tudo isso sozinho?
- Deixa-te de sarcasmos. E até o montei.
- Não acredito. Como conseguiste, sem me pedir ajuda?
- Ou paras com isso ou não te conto mais nada. Foi fácil; limitei-me a seguir as instruções que vinham com a webcam. Não é nada difícil, aliás.
- Devo recordar a quem se deve a ideia original?
- Pronto, pronto… Tal como tu tinhas sugerido, fui a uma loja de informática e comprei a câmara. Como o senhor Alegria não estava (como sabes, foi para a Suíça outra vez), entrei no seu gabinete…
- Para a Suíça, dizes tu… pois, pois, ainda estou para saber que raio vai lá fazer esse marmelo!
- Sabes muito bem: vai visitar a irmã, coitadinha.
- Ai, sim? Alguma vez a viste?
- Na verdade, não, mas sei que existe. Há dias, o Tó Luís…
- Qual Tó Luís? O da loja dos animais?
- Sim, esse. Por que falas nisso? Recordações da tua vida anterior?
- Bah, não tenho memória desse período. Desconfio que nunca lá estive.
- Nunca lá estiveste? Vieste de lá, dentro dum saco…
- Pára, pára, vais recomeçar a imaginar melodramas baratos? Deve haver vagas para guionistas em Hollywood!
- Pronto, já entendi. Vamos então ao que interessa.
- Já que tanto insistes, conta lá.
- Está bem, mas estava a dizer-te que o Tó Luís comentou comigo que o pai dele conheceu a irmã do senhor Alegria.
- Pode lá ser!
- Não só a conheceu como os dois se apaixonaram e tiveram um caso amoroso.
- Só mesmo uma tipa doida para alinhar com o pai desse energúmeno!
- Acontece que a mana Alegria não era tolinha. Pelo menos, não nessa época. O pai dela, enfurecido com o romance ‑ não te esqueças que o pai do Tó Luís era um modesto lavrador ‑ , enviou-a para um colégio na Suíça e nunca mais se viram. A valsa é dançada a dois, mas tem um ritmo ternário...
- Então, mas a doida não estava num manicómio?
- Sanatório. Mas ninguém sabe muito bem o que aconteceu a seguir, pode ter enlouquecido, pode ter adoecido…
- Pode ter morrido.
- Isso não, o senhor Alegria vai visitá-la todos os anos!
- Irá mesmo? Nem sabes se vai à Suíça.
- Vai, porque lhe vi o bilhete de avião para Zurique.
- Está bem, e essa criatura tinha nome?
- Chamava-se Paciência. Paciência Alegria.
A música terminava E esse charlatão / Vai cantar uma canção. Modesto impacientou-se:
- Mas, afinal, o plano, executaste-o ou não?
- Claro que sim. Olha, ouve.
Nas prateleiras, cinquenta mil pares de olhos fecharam-se ainda mais.
| posted by Mito, domingo, agosto 20, 2006 | 1 comments |




CAPÍTULO VII

Heitor

Pessoa importante, nunca foi algo que quisesse ser. No entanto, ansiava por me libertar da servidão do meu trabalho no Estúdio.
No dia em que, pela primeira vez, me foi dada a possibilidade de tirar fotografias tipo passe e as estraguei – pelo menos, aos olhos perros do senhor Tristão –, fui alvo de um raspanete do patrão tão veemente que ponderei seriamente procurar outro emprego. Recordo ainda hoje vivamente a violência despropositada com que ele arremessou os negativos para o cesto de lixo.
Na hora do almoço, deixei-me ficar na loja. O brilho do acetato cintilava, sorridente, no caixote do lixo preto, como uma estrela no firmamento tentando cativar o seu fadado.
Peguei nos negativos e resolvi ampliá-los para papel, ou seja, fazer aquilo a que a maior parte das pessoas chama “revelar”.
Uma a uma, as fotografias foram assomando. As quatro. Eram perfeitas. A distribuição da luz, os contrastes suavizados, as sombras apaziguadas, conferiam àquelas imagens de rosto feminino a dignidade de estátuas helénicas. E até os olhos fechados lhes emprestavam a serenidade do mármore.
Amorosamente, coloquei-as dentro de um envelope, com o cuidado de quem embala porcelana fina. Ao fim do dia, levei-as para casa.

Não tinha apetite. Estiquei-me na cama, com os olhos pregados no tecto. Vivo num quarto alugado numa casa velha, daquelas que ainda têm forro de madeira. Perco horas, de barriga para cima, vagueando pelos desenhos dos nós da madeira, encontrando sempre novos seres, consoante a luminosidade e o ângulo de visão. Algumas figuras são-me já familiares e atrevem-se mesmo a comentar e criticar alguns passos da minha vida. (Pequenas concessões de quem não tem muita companhia.)
Estava desgastado, saturado do Estúdio Alegria mai-las suas tristezas. Não suportava a avareza e a rispidez do patrão. Para além disso, o trabalho era rotineiro, entediante, monocórdico, estupidificante…
Não tinha vindo ao mundo para semelhante sina. Não para cumprir aquela existência de cinza pardacenta. Deveria haver algo mais. Cada pessoa nasce com um desígnio, uma missão, sei lá, qualquer coisa que dê sentido a uma vida. E cada um tem que descobrir para que está talhado. Com a certeza de que esse desígnio é sempre tudo menos o óbvio. Não é ser médico, como queria a mamã; ou padre, como desejava a titi; ou ainda advogado, como insistia o papá.
A maior parte das pessoas nunca se encontra; alguns nascem para salvar; outros, para criar; outros ainda, para destruir. A maioria morre sem ter vivido. Sem ter cumprido o seu desígnio. Decerto que o meu não era ser escravo do senhor Alegria até ao resto dos meus dias. Ou dos seus. Teria de me despedir, arranjar outro emprego. Ou então arranjar um suplementar.
Coloquei as quatro fotografias apoiadas na janela do quarto e deixei-as olharem para mim. De olhos bem fechados, VIAM-ME por inteiro. Compreendiam-me. Totalmente. Talvez que, ao fecharem os dois globos oculares, um terceiro olho se ligasse – o “olho místico.” Uma aura de ampla comunhão envolveu todo o quarto. Ouvi-me balbuciar de alegria, no momento em que também fechei os olhos.
| posted by Mito, sexta-feira, agosto 04, 2006 | 3 comments |