A Duas Mãos





Capítulo V
Heitor

Antunes. Aníbal Antunes. Este homem veio agitar o lodaçal em que a minha existência começava a transformar-se.
Há duas semanas, estando o senhor Tristão ausente do seu estabelecimento, o telefone tocou e eu atendi. Do outro lado da linha, uma voz de sotaque micaelense transpirava de cumplicidade:
- Senhor Alegria, fala Aníbal Antunes, do Banco Comercial dos Açores. Já tenho notícias da Suíça!
Inexplicavelmente, uma voz dentro de mim ordenou-me que me fizesse passar pelo meu patrão. De imediato, pressionei as narinas ligeiramente e respondi:
- A sério? Ora diga lá, amigo. Peço desculpa por me estar a fazer ouvir mal, mas é que estou cá com uma constipação…
- Isso é que é mau… Mas tenho boas novas. O banco suíço já telefonou a confirmar a transferência.
- Óptimo, óptimo.
- Bom agora já sabe, para movimentar o dinheiro só com os códigos que eles lhe deram. Veja lá onde guarda isso!
- Esteja descansado, isso está guardado em lugar seguro.
- Muito bem, as melhoras, então. E já sabe, quando precisar de mais alguma coisa, apite. A propósito, estive hoje com a sua prima Margarida. Continua com a boa disposição de sempre. Aquela mulher é um furacão.
- Tem razão, o caro Aníbal. Boa tarde, então, amigo.
- Até à próxima, senhor Alegria. Passe um bom resto de dia. Com licença.
Respirei fundo durante alguns momentos. O sacana do patrão tinha movimentos bancários secretos. E por que diabo nos Açores? Algo me dizia que poderia tirar partido daquela situação. Sabia até onde o senhor Alegria possivelmente guardaria os códigos: no cofre que tinha debaixo da reprodução do quadro de Cezanne, Os Jogadores de Cartas. Já por algumas vezes o tinha entrevisto a abri-lo e as marcas nos quatro cachimbos da parede representados na tela mostravam claramente onde ficava o mecanismo de abertura. No entanto, o cofre era de combinação, pois o ouvira rodar o mecanismo. Não podia perguntar-lhe simplesmente qual era o código. Teria de haver uma maneira.
Afinal, havia mais um coleccionador no Estúdio Alegria. Só que este coleccionava dinheiro! Todos os anos de exigências e maus pagos me fizeram tremer de indignação, mas deram-me motivação para me ressarcir.
Custou-me a passar esse dia de trabalho. Quando voltou, o senhor Tristão perguntou se tinham telefonado e eu respondi que não, tentando parecer natural. Ainda gaguejei:
- Está à espera de algum telefonema importante? Se telefonarem, que digo?
O meu interlocutor pareceu hesitar na resposta e acabou por dizer, displicentemente:
- Não, não. Perguntei só por perguntar.
Intimamente, senti um gozo especial. A partir daquele momento, o senhor Alegria não estava já na posição superior do dissimulado que engana toda a gente. Desde então, continuei a dizer que sim, espreitando-o de soslaio. Consegui confirmar que o cofre se encontrava atrás do quadro e ainda que os cachimbos da parede assinalavam a zona onde o senhor Alegria pressionava com aqueles dedos esquálidos e gananciosos.
Um dia, estando em amena cavaqueira com o meu Botia Modesta, ele sugeriu-me a solução ideal. Modesto, peixe genial! É claro!
Como é que eu não havia pensado nisso?
| posted by Mito, quarta-feira, julho 26, 2006 | 2 comments |

Capítulo III

Heitor

Escuro. Está muito escuro. É nas trevas que tudo se urde. Na escuridão da noite, germina a semente, reza o aflito e espera o Iniciado.
É na câmara escura que o nitrato de potássio queimado se agarra teimosamente ao acetato, contra a corrente da lavagem, configurando os milhares de pontos que darão definição à imagem nítida e contrastada que se poderá fixar na retina em banho de claridade. Tudo tem uma gestação e a flor brota da terra assim como o sol rasga a noite ao alvorecer.
Não consigo dormir. Embalo as insónias em recordações do tempo em que fiz a descoberta. Faz hoje dez anos que comecei a trabalhar no Estúdio Alegria, propriedade de Tristão Alegria, que ainda é hoje o meu patrão. Trata-se de um estabelecimento com tradição na cidade em que vivo, uma vez que foi fundado pelo avô do senhor Tristão, Cândido Alegria, que aproveitou a fortuna da esposa, Letícia, para montar um negócio de um luxo considerado escandaloso na altura. Durante décadas, o Estúdio Alegria constituiu um ex-libris da cidade e o Senhor Cândido mantinha a sua invejável posição de rico e de artista. Sim, que a sua paixão eram os retoques e os cenários que acompanhavam as fotografias da época. Depois, o seu filho único, Plácido, desbaratou toda a riqueza familiar, como sempre se queixava o Senhor Tristão, deixando-lhe, a ele, a dura tarefa de continuar a tradição e de cuidar da sua querida irmã, Hortênsia, doente mental que vivia internada na Suíça e era um “sorvedouro de cabedais”, ainda nas palavras do amantíssimo irmão. Solteiro inveterado, vivendo para o trabalho, cultivando a sua mesquinhez com afinco, não se lhe conhecem outros afectos. Apenas por uma vez recebeu a visita na loja de uma prima açoriana, de nome Margarida, uma mulher bela e espampanante que encheu o Estúdio Alegria com o seu espírito durante as três horas que lá demorou. Que contraste com o primo! Duas vezes por ano, o patrão lá abalava para as altas paragens suíças, a visitar a mana. Demorava uma ou duas semanas e regressava feliz, com a alma lavada, talvez por sentir o prazer de um dever cumprido. Ai que prazer ter um livro para ler, teclo, distraído. E não o fazer. E não o escrever.
Foi logo com esta resenha histórica que o senhor Tristão me recebeu “à experiência”, por recomendação de um tio meu, que nunca cheguei a conhecer. Sempre lamentando a pouca fortuna, os desvarios do pai e as avultadas despesas, lá me foi dando um salário de miséria e trabalhinho até fartar. Horas extraordinárias era vocabulário desconhecido no dicionário das remunerações do senhor Tristão. Cedo me fui apercebendo de que era a sovinice do patrão que me impedia de ter uma vida mais desafogada. Porém, fui ficando, talvez para grande espanto do próprio. A minha motivação: a minha colecção.
Tudo começou na segunda semana de trabalho. Após ter passado os primeiros dias executando enfadonhas tarefas de rotina, o senhor Tristão achou por bem confiar-me trabalhos mais arrojados: nada mais, nada menos que tirar fotografias “tipo passe” aos clientes da loja. Logo na primeira tentativa, fui brindado com a admoestação seca:
- Oh, senhor Heitor, senhor Heitor, o que foi fazer... Tem de ter mais cuidado; assim só me vai trazer prejuízo. Veja o que faz!
Ao lado dos negativos cortados, as fotos da cliente. Tinham todas ficado de olhos fechados. Bem fechados.
| posted by Mito, quarta-feira, julho 19, 2006 | 2 comments |

Capítulo I


Heitor

De olhos bem fechados. Meticulosamente, miro, remiro os últimos exemplares da minha colecção. São fenomenais e, melhor que isso, são fruto de um engenhoso esforço de obtenção. Observo-os mais uma vez, embevecido com o meu critério. Reparo em cada detalhe, detenho-me em cada “nuance”. Com os olhos bem fechados.
Hoje, alcancei o número cinquenta mil. Quinhentas centenas de exemplares, organizados, datados e catalogados, espalhados pelo apartamento, ocupando uma boa parte do espaço disponível, como se fossem membros de uma família numerosa.
O facto de não os poder expor sempre me galvanizou, ao invés de me retrair. Reconheço que a acumulação é já impressionante, mas chega a ser assustador pensar no que ainda está por fazer, no desafio que coloquei a mim próprio. Como alcançar o milhão no curto espaço de uma vida? Terei de me transcender, de criar alguma estratégia espectacular que me permita acelerar ainda mais o ritmo com que vou coleccionando. E acima de tudo, manter o sigilo.
Não sei onde tudo isto me vai levar. Sei que não penso noutra coisa. Encaro-o como uma missão. Às vezes, gostava de partilhar com alguém este meu hobbie. E os seus segredos. E as portas que abre. E as que fecha.
Conheço cada um dos exemplares da minha colecção. Cuido deles zelosamente.
Eles sabem que podem contar comigo. Podem dormir o seu sono sossegado e eterno. Eu estou a velar.

Amanhã cedo, vou iniciar a execução do meu plano secundário: garantir a minha autonomia financeira. É indispensável que o faça. Como me desola manter este emprego estúpido! Como me rouba o tempo precioso para a consecução dos meus objectivos! Se não teclasse estas mal traçadas linhas – curiosa expressão! – no meu computador pessoal, talvez enlouquecesse. Ou talvez isso já não seja possível. Talvez tenha alcançado um estádio em que a loucura já nada pode contra mim.
Nem contra ti, Modesto, meu pobre peixe que nunca te mostras senão à noite, de relance. Neste momento, que sonhos húmidos ruminas tu, debaixo desse basalto açoriano que me ornamenta o aquário? Terás tu opinião sobre o que faço? Há muito me convenci da tua aquiescência. De outro modo, ter-te-ia já desalojado, como fiz aos teus companheiros. Como me pareciam abelhudos, espreitando pelo vidro! Estupefactos com o que viam. Os olhos redondos de censura!
Modesto, meu amigo, como gostava de te levar comigo amanhã, para veres in loco a aplicação dos teus planos superiormente gizados… Prometo que não vou falhar. Seguirei à risca as tuas recomendações. A minha mão não vacilará. Terás de esperar até que regresse. Contar-te-ei tudo ao pormenor. Terás de te habituar à ideia de me não veres durante bastante tempo. Não te preocupes, arranjarei alguém para te alimentar todos os dias.
Não pretendo fazer mais nada na vida senão cumprir a minha missão e prosseguir a minha colecção. A ninguém revelarei os meus desígnios.
Desligo o computador. Regresso às minhas últimas peças, capturadas hoje. São perfeitas. Fito-as fixamente. De olhos bem fechados. Fechados.
| posted by Mito, quarta-feira, julho 12, 2006 | 2 comments |