A Duas Mãos





CAPÍTULO VII

Heitor

Pessoa importante, nunca foi algo que quisesse ser. No entanto, ansiava por me libertar da servidão do meu trabalho no Estúdio.
No dia em que, pela primeira vez, me foi dada a possibilidade de tirar fotografias tipo passe e as estraguei – pelo menos, aos olhos perros do senhor Tristão –, fui alvo de um raspanete do patrão tão veemente que ponderei seriamente procurar outro emprego. Recordo ainda hoje vivamente a violência despropositada com que ele arremessou os negativos para o cesto de lixo.
Na hora do almoço, deixei-me ficar na loja. O brilho do acetato cintilava, sorridente, no caixote do lixo preto, como uma estrela no firmamento tentando cativar o seu fadado.
Peguei nos negativos e resolvi ampliá-los para papel, ou seja, fazer aquilo a que a maior parte das pessoas chama “revelar”.
Uma a uma, as fotografias foram assomando. As quatro. Eram perfeitas. A distribuição da luz, os contrastes suavizados, as sombras apaziguadas, conferiam àquelas imagens de rosto feminino a dignidade de estátuas helénicas. E até os olhos fechados lhes emprestavam a serenidade do mármore.
Amorosamente, coloquei-as dentro de um envelope, com o cuidado de quem embala porcelana fina. Ao fim do dia, levei-as para casa.

Não tinha apetite. Estiquei-me na cama, com os olhos pregados no tecto. Vivo num quarto alugado numa casa velha, daquelas que ainda têm forro de madeira. Perco horas, de barriga para cima, vagueando pelos desenhos dos nós da madeira, encontrando sempre novos seres, consoante a luminosidade e o ângulo de visão. Algumas figuras são-me já familiares e atrevem-se mesmo a comentar e criticar alguns passos da minha vida. (Pequenas concessões de quem não tem muita companhia.)
Estava desgastado, saturado do Estúdio Alegria mai-las suas tristezas. Não suportava a avareza e a rispidez do patrão. Para além disso, o trabalho era rotineiro, entediante, monocórdico, estupidificante…
Não tinha vindo ao mundo para semelhante sina. Não para cumprir aquela existência de cinza pardacenta. Deveria haver algo mais. Cada pessoa nasce com um desígnio, uma missão, sei lá, qualquer coisa que dê sentido a uma vida. E cada um tem que descobrir para que está talhado. Com a certeza de que esse desígnio é sempre tudo menos o óbvio. Não é ser médico, como queria a mamã; ou padre, como desejava a titi; ou ainda advogado, como insistia o papá.
A maior parte das pessoas nunca se encontra; alguns nascem para salvar; outros, para criar; outros ainda, para destruir. A maioria morre sem ter vivido. Sem ter cumprido o seu desígnio. Decerto que o meu não era ser escravo do senhor Alegria até ao resto dos meus dias. Ou dos seus. Teria de me despedir, arranjar outro emprego. Ou então arranjar um suplementar.
Coloquei as quatro fotografias apoiadas na janela do quarto e deixei-as olharem para mim. De olhos bem fechados, VIAM-ME por inteiro. Compreendiam-me. Totalmente. Talvez que, ao fecharem os dois globos oculares, um terceiro olho se ligasse – o “olho místico.” Uma aura de ampla comunhão envolveu todo o quarto. Ouvi-me balbuciar de alegria, no momento em que também fechei os olhos.
| posted by Mito, sexta-feira, agosto 04, 2006

3 Comments:

Olhos... Os meus olhos continuam a ler e continuam a deliciar-me, graças ao vosso "ping-pong" literário. Obrigado.
Obrigado pela simpatia, caveman. Tentaremos não desiludir.
acho que esse ping-pong teria muito sucesso
deviam pensar em talvez um dia fazerem um livro
e quem sabe mais
ve-se que as maos de um sao as maos do outro

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