A Duas Mãos


Capítulo I


Heitor

De olhos bem fechados. Meticulosamente, miro, remiro os últimos exemplares da minha colecção. São fenomenais e, melhor que isso, são fruto de um engenhoso esforço de obtenção. Observo-os mais uma vez, embevecido com o meu critério. Reparo em cada detalhe, detenho-me em cada “nuance”. Com os olhos bem fechados.
Hoje, alcancei o número cinquenta mil. Quinhentas centenas de exemplares, organizados, datados e catalogados, espalhados pelo apartamento, ocupando uma boa parte do espaço disponível, como se fossem membros de uma família numerosa.
O facto de não os poder expor sempre me galvanizou, ao invés de me retrair. Reconheço que a acumulação é já impressionante, mas chega a ser assustador pensar no que ainda está por fazer, no desafio que coloquei a mim próprio. Como alcançar o milhão no curto espaço de uma vida? Terei de me transcender, de criar alguma estratégia espectacular que me permita acelerar ainda mais o ritmo com que vou coleccionando. E acima de tudo, manter o sigilo.
Não sei onde tudo isto me vai levar. Sei que não penso noutra coisa. Encaro-o como uma missão. Às vezes, gostava de partilhar com alguém este meu hobbie. E os seus segredos. E as portas que abre. E as que fecha.
Conheço cada um dos exemplares da minha colecção. Cuido deles zelosamente.
Eles sabem que podem contar comigo. Podem dormir o seu sono sossegado e eterno. Eu estou a velar.

Amanhã cedo, vou iniciar a execução do meu plano secundário: garantir a minha autonomia financeira. É indispensável que o faça. Como me desola manter este emprego estúpido! Como me rouba o tempo precioso para a consecução dos meus objectivos! Se não teclasse estas mal traçadas linhas – curiosa expressão! – no meu computador pessoal, talvez enlouquecesse. Ou talvez isso já não seja possível. Talvez tenha alcançado um estádio em que a loucura já nada pode contra mim.
Nem contra ti, Modesto, meu pobre peixe que nunca te mostras senão à noite, de relance. Neste momento, que sonhos húmidos ruminas tu, debaixo desse basalto açoriano que me ornamenta o aquário? Terás tu opinião sobre o que faço? Há muito me convenci da tua aquiescência. De outro modo, ter-te-ia já desalojado, como fiz aos teus companheiros. Como me pareciam abelhudos, espreitando pelo vidro! Estupefactos com o que viam. Os olhos redondos de censura!
Modesto, meu amigo, como gostava de te levar comigo amanhã, para veres in loco a aplicação dos teus planos superiormente gizados… Prometo que não vou falhar. Seguirei à risca as tuas recomendações. A minha mão não vacilará. Terás de esperar até que regresse. Contar-te-ei tudo ao pormenor. Terás de te habituar à ideia de me não veres durante bastante tempo. Não te preocupes, arranjarei alguém para te alimentar todos os dias.
Não pretendo fazer mais nada na vida senão cumprir a minha missão e prosseguir a minha colecção. A ninguém revelarei os meus desígnios.
Desligo o computador. Regresso às minhas últimas peças, capturadas hoje. São perfeitas. Fito-as fixamente. De olhos bem fechados. Fechados.
| posted by Mito, quarta-feira, julho 12, 2006

2 Comments:

Bom início.
Aberto. Aberto é o que eu estou! À leitura desta vossa caminhada pelo éter... Sei-o, porque releio estes capítulos! Continuem...

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