A Duas Mãos


Capítulo III

Heitor

Escuro. Está muito escuro. É nas trevas que tudo se urde. Na escuridão da noite, germina a semente, reza o aflito e espera o Iniciado.
É na câmara escura que o nitrato de potássio queimado se agarra teimosamente ao acetato, contra a corrente da lavagem, configurando os milhares de pontos que darão definição à imagem nítida e contrastada que se poderá fixar na retina em banho de claridade. Tudo tem uma gestação e a flor brota da terra assim como o sol rasga a noite ao alvorecer.
Não consigo dormir. Embalo as insónias em recordações do tempo em que fiz a descoberta. Faz hoje dez anos que comecei a trabalhar no Estúdio Alegria, propriedade de Tristão Alegria, que ainda é hoje o meu patrão. Trata-se de um estabelecimento com tradição na cidade em que vivo, uma vez que foi fundado pelo avô do senhor Tristão, Cândido Alegria, que aproveitou a fortuna da esposa, Letícia, para montar um negócio de um luxo considerado escandaloso na altura. Durante décadas, o Estúdio Alegria constituiu um ex-libris da cidade e o Senhor Cândido mantinha a sua invejável posição de rico e de artista. Sim, que a sua paixão eram os retoques e os cenários que acompanhavam as fotografias da época. Depois, o seu filho único, Plácido, desbaratou toda a riqueza familiar, como sempre se queixava o Senhor Tristão, deixando-lhe, a ele, a dura tarefa de continuar a tradição e de cuidar da sua querida irmã, Hortênsia, doente mental que vivia internada na Suíça e era um “sorvedouro de cabedais”, ainda nas palavras do amantíssimo irmão. Solteiro inveterado, vivendo para o trabalho, cultivando a sua mesquinhez com afinco, não se lhe conhecem outros afectos. Apenas por uma vez recebeu a visita na loja de uma prima açoriana, de nome Margarida, uma mulher bela e espampanante que encheu o Estúdio Alegria com o seu espírito durante as três horas que lá demorou. Que contraste com o primo! Duas vezes por ano, o patrão lá abalava para as altas paragens suíças, a visitar a mana. Demorava uma ou duas semanas e regressava feliz, com a alma lavada, talvez por sentir o prazer de um dever cumprido. Ai que prazer ter um livro para ler, teclo, distraído. E não o fazer. E não o escrever.
Foi logo com esta resenha histórica que o senhor Tristão me recebeu “à experiência”, por recomendação de um tio meu, que nunca cheguei a conhecer. Sempre lamentando a pouca fortuna, os desvarios do pai e as avultadas despesas, lá me foi dando um salário de miséria e trabalhinho até fartar. Horas extraordinárias era vocabulário desconhecido no dicionário das remunerações do senhor Tristão. Cedo me fui apercebendo de que era a sovinice do patrão que me impedia de ter uma vida mais desafogada. Porém, fui ficando, talvez para grande espanto do próprio. A minha motivação: a minha colecção.
Tudo começou na segunda semana de trabalho. Após ter passado os primeiros dias executando enfadonhas tarefas de rotina, o senhor Tristão achou por bem confiar-me trabalhos mais arrojados: nada mais, nada menos que tirar fotografias “tipo passe” aos clientes da loja. Logo na primeira tentativa, fui brindado com a admoestação seca:
- Oh, senhor Heitor, senhor Heitor, o que foi fazer... Tem de ter mais cuidado; assim só me vai trazer prejuízo. Veja o que faz!
Ao lado dos negativos cortados, as fotos da cliente. Tinham todas ficado de olhos fechados. Bem fechados.
| posted by Mito, quarta-feira, julho 19, 2006

2 Comments:

Aberto. Imagino que aberto era algo que Tristão não poderia ser. O próprio nome o revela! Fechado consigo próprio, com a sua vida, com a sua sovinice... Pelo contrário, Heitor parece aberto. Aberto a novas experiências, que o terão levado a abraçar uma Paixão. Aquela que se realiza plenamente na "câmara escura". Acredito que hoje seja um "convertido" ao digital (a sua abertura indica isso), mas presumo que concorde comigo...
Caro cave, tem toda a razão. Não sei muito ainda sobre o Heitor, mas, com efeito, posso dizer-lhe que o digital veio trazer-lhe um novo alento...

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